Introdução
"Preciso ajustar o treino da minha aluna em cada fase do ciclo?" "O rendimento dela realmente cai durante a menstruação ou na TPM?" "Existe uma fase ideal para buscar progressões mais intensas?"
Se você já se fez alguma dessas perguntas, saiba que está diante de um dos temas mais complexos e, ao mesmo tempo, mais cercados de mitos na prescrição de treino para mulheres. A relação entre o ciclo menstrual e o desempenho físico é real, mas nem sempre é o que parece — e qualquer tentativa de resumir tudo em "regras de ouro" ou protocolos fixos por fase do ciclo acaba ignorando o que a ciência realmente mostra.
Durante décadas, a fisiologia do exercício foi estudada quase exclusivamente em homens. Só nos últimos anos a ciência começou a olhar com mais atenção para as particularidades femininas, e o volume de pesquisas sobre ciclo menstrual e treino cresceu de forma expressiva. Mas cuidado: mais estudos não significam respostas simples. A verdade é que esse tema é complexo, e o profissional que entende essa complexidade ganha uma vantagem enorme na hora de prescrever.
Este texto foi escrito para ir além das manchetes e mergulhar nas evidências atuais. Vamos explorar como funcionam as flutuações hormonais, o que as meta-análises mais robustas dizem sobre seu impacto no desempenho, e — talvez o mais importante — por que a experiência individual de cada aluna vale mais do que qualquer generalização. No final, você vai entender como aplicar esse conhecimento na prática, inclusive com o suporte de ferramentas como o Treino AI.
Entendendo o Ciclo Menstrual
Para prescrever treino considerando o ciclo menstrual, é fundamental entender a fisiologia básica. O ciclo menstrual funciona como uma orquestra hormonal, regida por uma comunicação fina entre o hipotálamo, a hipófise e os ovários. O resultado são flutuações previsíveis — mas individualmente variáveis — nos níveis de estrogênio e progesterona, os dois principais hormônios sexuais femininos.

Um ciclo regular dura entre 21 e 35 dias, com a menstruação marcando o início (Dia 1). Classicamente, ele é dividido em duas grandes fases, separadas pela ovulação.
A fase folicular começa no primeiro dia da menstruação e vai até a ovulação. No início, tanto estrogênio quanto progesterona estão em níveis baixos. A hipófise libera o hormônio FSH, que estimula o desenvolvimento dos folículos nos ovários. À medida que um folículo se torna dominante, ele passa a produzir quantidades crescentes de estrogênio, que atinge seu pico pouco antes da ovulação.
A ovulação geralmente ocorre por volta do meio do ciclo. O pico de estrogênio dispara um surto de LH pela hipófise, que é o gatilho para a liberação do óvulo.
A fase lútea começa após a ovulação e dura até a próxima menstruação (em geral, cerca de 14 dias). O folículo rompido se transforma no corpo lúteo, que passa a produzir grandes quantidades de progesterona e também estrogênio. Se não houver gravidez, o corpo lúteo regride, os hormônios caem, e a menstruação recomeça.
Esse é o modelo "padrão". Na prática, a duração do ciclo, o momento da ovulação e os níveis hormonais variam bastante de mulher para mulher — e até de ciclo para ciclo na mesma pessoa. Essa variabilidade é um ponto central que todo profissional precisa ter em mente ao prescrever.
O Que a Ciência Realmente Diz Sobre Desempenho
Com base nessa fisiologia, seria razoável supor que as oscilações de estrogênio e progesterona influenciassem o desempenho físico das suas alunas. Afinal, o estrogênio tem efeitos potencialmente anabólicos e pode afetar o metabolismo energético, enquanto a progesterona pode ter efeitos catabólicos e influenciar a termorregulação. Faz sentido, certo?
Só que, quando olhamos para as evidências mais robustas — especialmente as meta-análises, que compilam dados de dezenas de estudos — o quadro é diferente do que muita gente imagina.
No que diz respeito à força muscular, a maioria das meta-análises recentes conclui que as variações hormonais ao longo de um ciclo natural têm um efeito trivial ou inexistente sobre a força máxima e sobre as adaptações ao treino de força, quando se analisa a média das participantes. A meta-análise de McNulty e colaboradores (2020), por exemplo, incluiu 78 estudos e encontrou apenas uma possível redução muito pequena no desempenho durante a fase folicular inicial — mas ressaltou a baixa qualidade de muitos estudos e a enorme variabilidade entre eles. Colenso-Semple e colaboradores (2023), focando especificamente em adaptações ao treino de força, não encontraram evidências consistentes de que periodizar o treino de acordo com as fases do ciclo traga maiores ganhos de força ou hipertrofia em comparação com o treino tradicional.
No campo do metabolismo energético e endurance, a história é parecida. Teoricamente, o estrogênio poderia promover maior uso de gorduras como combustível, enquanto a progesterona teria efeitos contrários. Alguns estudos menores sugerem diferenças nesse sentido, mas quando os dados são agregados em meta-análises, as diferenças desaparecem ou se tornam irrelevantes na prática. D'Souza e colaboradores (2023) não encontraram diferenças significativas na oxidação de carboidratos ou gorduras entre as fases do ciclo. E McNulty e colaboradores (2020) concluíram que o desempenho em exercícios de endurance também parece ser afetado de forma apenas trivial, na média, pelas fases do ciclo.
Agora, atenção para um ponto crucial que muda tudo na sua prescrição: essas conclusões se referem a efeitos médios em grupos de mulheres. E é aqui que mora o perigo de tirar conclusões apressadas.
Variabilidade Individual: O Fator Mais Importante na Prescrição
Se as meta-análises apontam para um impacto médio trivial, por que tantas alunas relatam que se sentem diferentes ao longo do ciclo? Por que alguns dias parecem ótimos para treinar e outros são uma batalha?
A resposta está na variabilidade individual — e ela é muito maior do que a maioria dos estudos consegue capturar. Entender isso muda completamente a forma como você aborda a prescrição.
Assumir que todas as mulheres têm um ciclo de 28 dias, com ovulação exatamente no dia 14 e flutuações hormonais idênticas, é um erro fundamental. A realidade é bem mais diversa. Ciclos regulares podem variar de 21 a 35 dias. A fase folicular pode ser mais curta ou mais longa, o que muda o momento da ovulação. Os níveis absolutos de estrogênio e progesterona variam substancialmente entre mulheres consideradas "normais". Nem todo ciclo regular é ovulatório — ciclos sem ovulação podem acontecer esporadicamente mesmo em mulheres saudáveis. E a forma como o corpo de cada mulher responde aos mesmos níveis hormonais também é diferente.
Isso significa que, embora na média o efeito da fase do ciclo possa ser pequeno, para uma aluna específica as flutuações hormonais podem ter um impacto muito mais perceptível. Ignorar essa individualidade é ignorar a experiência vivida — e comprometer a qualidade da sua prescrição.
Além disso, muitos estudos que não encontraram diferenças significativas têm falhas metodológicas que podem mascarar efeitos reais. A falta de verificação hormonal precisa, amostras pequenas e heterogêneas, e a análise baseada apenas em médias grupais são limitações frequentes. A ciência avançou, mas ainda há muito a descobrir — e as generalizações precisam ser feitas com cautela pelo profissional que quer prescrever de forma inteligente.
Sintomas e Percepção: O Que Realmente Impacta o Treino da Sua Aluna
Se o impacto hormonal direto no desempenho objetivo parece ser pequeno na média, o que explica a percepção tão comum de que o ciclo influencia o treino?
A resposta está nos sintomas menstruais e na experiência subjetiva — e é aqui que você, como profissional, precisa estar atento.
Uma vasta gama de sintomas pode acompanhar o ciclo, especialmente no período pré-menstrual e durante a menstruação: cólicas, dor lombar, fadiga, inchaço, alterações de humor, irritabilidade, dificuldade de concentração. A presença e a intensidade desses sintomas variam enormemente de mulher para mulher — e podem, sim, afetar a disposição para treinar, a tolerância ao esforço e a recuperação.
Quando sua aluna sente dor ou fadiga extrema, qualquer treino se torna mais difícil, mesmo que a capacidade neuromuscular não esteja alterada naquele dia. E a percepção que ela tem sobre seu corpo e suas capacidades também importa: se ela consistentemente espera um desempenho pior em determinada fase, isso pode influenciar seu esforço e resultado.
Estudos qualitativos mostram que as experiências e crenças individuais sobre o ciclo moldam a abordagem ao treino. A percepção de impacto negativo varia imensamente entre os estudos — de menos de 3% a quase 100% das participantes, dependendo da amostra. Mas para muitas mulheres, essa percepção é real e merece respeito na hora da prescrição.
O ponto aqui não é invalidar a ciência, nem dizer que "tudo é psicológico". É reconhecer que a experiência de treinar vai além de marcadores objetivos de desempenho. Os sintomas são reais. A percepção importa. E ambos precisam entrar na equação quando você prescreve.
Por Que Protocolos Fixos Por Fase Não Funcionam
Com tudo isso em mente, fica claro por que tentar aplicar "regras de bolso" baseadas em fases do ciclo é problemático — e por que você precisa de uma abordagem mais sofisticada.
Primeiro, porque a própria ciência não sustenta generalizações desse tipo. As evidências são inconsistentes, muitos estudos têm limitações metodológicas sérias, e os resultados médios mascaram uma variabilidade individual enorme.
Segundo, porque essas abordagens ignoram o que realmente importa: como a sua aluna se sente naquele momento específico. O ciclo dela pode ter 25 dias ou 32. A ovulação pode acontecer no dia 12 ou no dia 18. Os sintomas podem ser intensos ou quase imperceptíveis. Nenhum protocolo genérico vai capturar tudo isso.
E terceiro, porque focar demais na fase do ciclo pode criar uma armadilha mental. Se a aluna acredita que "não pode treinar forte" em determinada fase, pode acabar limitando seu desempenho sem necessidade — ou, pior, se frustrando quando não consegue seguir um protocolo que não foi feito para ela.
A tentativa de encaixar a complexidade feminina em uma fórmula simples é, no fundo, uma prescrição preguiçosa. Suas alunas merecem uma abordagem que considere quem elas são, não apenas em que dia do ciclo estão.
O Caminho Inteligente: Individualização na Prática
Se protocolos fixos não funcionam, o que funciona? A resposta está na individualização, no monitoramento e na comunicação — três pilares que todo profissional precisa dominar ao trabalhar com mulheres.
O primeiro passo é coletar informações sobre o ciclo da sua aluna. Pergunte sobre a regularidade, a duração média, os sintomas que ela percebe e, principalmente, se ela identifica momentos do mês em que se sente com menos energia ou disposição para treinar. Essa conversa inicial já fornece dados valiosos para a prescrição.
O segundo passo é usar essa informação de forma inteligente. Se a aluna relata que consistentemente se sente pior em determinada fase — seja na menstruação, na TPM ou em outro momento — você pode sincronizar o ciclo de treino para que a semana mais leve (aquela de menor volume ou intensidade, mais introdutória) coincida exatamente com esse período. Não é sobre "não treinar" nessa fase, mas sobre respeitar o momento e usar a periodização a favor dela.
E o terceiro passo é criar um ambiente de comunicação aberta. Um espaço onde a aluna se sinta confortável para compartilhar como está se sentindo, sem medo de julgamento, é essencial para que os ajustes sejam feitos de forma contínua e inteligente.
Algumas estratégias práticas: em dias de sintomas intensos, considere reduzir o volume ou intensidade, focar mais na técnica, optar por exercícios de menor impacto ou simplesmente ajustar expectativas. Monitore a percepção de esforço (RPE) de forma consistente — ela é uma janela para entender como a aluna está respondendo ao treino em diferentes momentos do ciclo.
O objetivo não é encontrar a fase "perfeita" para treinar mais forte. É criar um plano sustentável, que respeite a fisiologia e a experiência individual de cada aluna, permitindo que ela alcance seus objetivos de forma saudável e consistente ao longo do tempo.
Como o Treino AI Potencializa Essa Abordagem
Tudo o que discutimos até aqui — individualização, sincronização do ciclo de treino com o ciclo menstrual, monitoramento contínuo — pode ser operacionalizado de forma muito mais eficiente com o suporte do Treino AI.
Na prática, quando você utiliza a plataforma para prescrever treino para uma aluna, pode ajustar o início do ciclo de treino para que a semana mais leve coincida exatamente com o período em que ela relata ter pior desempenho ou mais sintomas. Se durante a anamnese ela indicou que a menstruação é o momento mais difícil, por exemplo, você configura para que a semana introdutória ou de menor intensidade caia nesse período. Isso não é um protocolo genérico — é uma prescrição pensada para aquela mulher específica, baseada no que ela relatou.
Mas a inteligência vai além da configuração inicial. À medida que a aluna registra suas respostas de treino — especialmente o RPE — a própria inteligência artificial começa a identificar padrões. Se em uma semana ela reporta um RPE muito mais alto do que o esperado para um exercício que já havia feito antes com facilidade, e na semana seguinte o padrão muda novamente, o sistema começa a "aprender" essas oscilações. Com o tempo, essa informação pode ser usada para refinar ainda mais a prescrição, antecipando momentos de maior ou menor capacidade de resposta ao treino.
Esse é o diferencial de uma prescrição verdadeiramente inteligente: não se trata de aplicar uma fórmula fixa, mas de criar um sistema que aprende com a resposta individual de cada aluna e permite ajustes contínuos. A ciência nos mostra que a variabilidade individual é o fator mais importante — e a tecnologia nos dá ferramentas para respeitar essa variabilidade na prática, de forma escalável.
Conclusão: Prescrição Inteligente Respeita a Individualidade
A relação entre ciclo menstrual e treino é complexa, e qualquer tentativa de simplificá-la demais acaba comprometendo a qualidade da sua prescrição. A ciência atual sugere que o impacto médio das flutuações hormonais no desempenho é pequeno — mas isso não invalida a experiência das alunas que sentem variações ao longo do mês.
A chave está em abraçar a variabilidade. A fisiologia de cada mulher é única. Os sintomas são únicos. A resposta ao treino em cada fase é única. E é por isso que o profissional que entende essa complexidade — e tem ferramentas para lidar com ela — se destaca no mercado.
O ciclo menstrual não precisa ser visto como um problema a ser resolvido, mas como uma variável a ser considerada na prescrição. Ao coletar informações, sincronizar os ciclos de forma inteligente, monitorar as respostas e ajustar continuamente, você oferece algo que protocolos genéricos nunca vão entregar: um treino que respeita quem a sua aluna realmente é.
E quando você combina esse conhecimento com uma plataforma como o Treino AI, que aprende com as respostas individuais e permite ajustes precisos, a prescrição deixa de ser um chute educado e passa a ser ciência aplicada na prática.
Rafa Lund
Mestre em Ciências do Desporto | Fundador Grupo LUND
Especialista em Prescrição do Treino de Força para Mulheres de 30-60 anos
Referências
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